que dor me dá de ver a terra se ferrar: ouvindo djavan no litoral da paraiba
um diálogo entre as minhas memórias de beira-mar e o álbum "novena"

“novena” é o álbum de djavan lançado em 1994, um trabalho com 11 faixas que marca a comemoração aos 20 anos de sua carreira. o conjunto de músicas é cheio de melodias que atualizam frevo e samba ao ritmo jazzístico de djavan, e as canções trazem um tema caro às composições do cantor, aquele que dá fama a ele: o desencanto (pra dizer o mínimo) em face ao fim ou à impossibilidade do amor.
lá em casa em joão pessoa, tem um exemplar em cd na coleção dos meus pais. pra ser honesta, só comecei a me interessar pela música que eles ouviam depois de velha, então se escutei na infância, não me lembro. mas já faz uns anos que eu o encontrei online nas minhas escutas infinitas do cantor e estou sempre voltando nos versos dessas canções. as letras referem-se ao litoral, e são cheias de gestos que descrevem movimentações à beira-mar, onde a presença da praia é constante.
venho tentando juntar algumas palavras sobre esse disco, mas ao fazer e desfazer essa cartinha de newsletter, vi que análise musical é um projeto muito ambicioso pra minha proposta. aí resolvi falar um pouco sobre as músicas e contar uma memória de quando estava ouvindo djavan no carro e tive um momento em que seus versos me arrebataram. quem diz que djavan não faz sentido não entendeu nada.
os dois aspectos específicos da canção — o desamor e a descrição de paisagens naturais praianas — me faz pensar como djavan fala sobre desilusão de uma forma comum a quem experiencia a perda. ele pinta uma paisagem que se reduz à ausência, é um mundo visto pelas lentes da falta. mirando nessa paisagem específica de beira-mar, o eu-lírico enxerga o que sente, e assim também embaralha imagens mitológicas fantasiosas e destoantes no cenário diante de si.
olhando pra esses versos, me pergunto como lugares tão bonitos chamam uma tristeza tão grande, o que me faz pensar nos momentos da vida em que senti que a paisagem se limitava não só à ausência, mas também à desordenação de tudo presente — uma queda brusca de sentido na configuração da imagem. sereias em meio a espingardas, uma ponta de faca, um lobisomem acuado no canto e um caminho sem volta. não é um cenário comum. djavan vê na paisagem seu amotinado interior.
em duas ocasiões nesse ano, fui à praia de barra de mamanguape, uma vila de 1.400 moradores no litoral norte da paraíba, que é um distrito da cidade onde meu pai nasceu. assim como é comum a lugares ainda relativamente intocados por uma grande número de gente, há um ar de deslocamento do resto do mundo que paira no lugar. para acessar a cidade, é preciso percorrer a estrada de terra que corta um imenso canavial, que, em si, possui a aparência da devastação, contrastante com a intocabilidade da cidadezinha.
da última vez que passamos por lá, um cheiro asqueroso de matéria orgânica decompondo invadiu nosso carro, e vimos alguns caminhões descartando ou recolhendo restos de matéria orgânica que apodreciam debaixo do sol (não que eu saiba exatamente como funciona esse processo). os pássaros e os saguis se acumulavam em fios elétricos ao redor de onde restam algumas árvores no meio da plantação. aquela cena junto ao cheiro forte exalado me provocou angústia a ponto de surgir em mim um sentimento forte de perda. estava processando a ausência que eu sentia olhando praquilo tudo. reconheci aquela paisagem arrasada e deixei que os limites entre o interno e o exterior se desmanchassem.
misturando os cenários da alagoas de djavan com o que estava em volta de mim, a música fez com que fosse possível confundir o lugar em que eu estava com a terra natal do cantor. a paraíba me pareceu o mesmo cenário em que ele havia presenciado a destruição de sua paisagem interna a partir do horizonte. um rio ruim, difícil de navegar.
a “terra ferrada” a que me refiro é descrita nos versos da faixa “lobisomem”. a canção me passa o enclausuramento em função da agonia de um sentimento à flor da pele. nela, se descreve um estado de desilusão tão profundo que transforma o eu-lírico em uma fera encurralada num canto, desarmado diante de sua própria frustração. uma violência capaz de acuar uma besta, em um horizonte limitante.
Pelo vento frio que começou a bater Pela paz interior do gado Descuidado caiu do céu um pingo, pingo Vai chover Sou um bicho perdido Um ser acuado num canto do abrigo Um lobisomem Adorada distante noite escura Onde Deus se flagra imaginando Oh-oh, que dor me dá de ver a terra se ferrar
em outra faixa, “quero-quero”, a saudade personifica o céu azul através do vermelho da saudade, e assim o dia ganha feições humanas quando desperta e manifesta seu humor.
Vejo o quero-quero cantarolar Ali por nós dois E toda janela se abrirá Pensando em você E a saudade pinta o céu de encarnado Com a água da lavagem do vermelho E o dia desperta mal-encarado Em ver toda ajuda desperdiçada
na letra de água de lua, misturam-se berço de sereias, o começo de uma vida e um agouro do fim:
Eu me criei no molhado Areia e pedras do lado Berço de uma sereia Faca de ponta, peixeira Pau na moleira, espingarda Cano comprido estampido no ar Clarão da espada afiada A morte um dia há de chegar
os floreios da flauta e clarinetes combinam com a descrição dos pássaros e dos muitos bichos que povoam a letras das canções. o mar sempre à espreita — assim como eu sabia que alcançaríamos a praia depois de superar aquela estrada de terra.
o caminho pelo qual seguimos dá no encontro do rio mamanguape com o mar. enfim, depois de passar a estrada, é possível perder-se em um novo horizonte. o que há de libertador na vista pro oceano é que não parece existir redução ali, e sim um caminho que aporta em algum litoral desconhecido. alimenta a crença de que o mar representa uma pluralidade de vias.
tardiamente, acrescento outra experiência marítima ao fio de djavan. no filme “as praias de agnès”, varda medita sobre sua própria vida usando como fio da memória suas lembranças à beira-mar. “se abríssemos as pessoas, encontraríamos paisagens. mas se me abrissem a mim, encontrariam praias”. o horizonte tem o caráter de futuro. assim, o inverso de djavan, se abrindo em paisagem de mar.
deixo aqui o link para escutar “novena”. obrigada ao usuário do youtube moacir simpatia pelo upload.